sexta-feira, 13 de maio de 2011

A "troika" do fraque

Quanto mais leio e releio o memorando da troika, menos compreendo o alvoroço que por aí vai, a favor ou contra. Absurdamente transformado numa espécie de "programa de Governo", o memorando vem bem a tempo de animar a campanha eleitoral e, talvez, de a tirar do impasse que se anunciava. Mas não vai resgatar o País, nem melhorar a vida dos portugueses, porque omite completamente a questão decisiva, que é a de saber qual vai ser o motor do nosso crescimento.


É um documento tão banal no diagnóstico como ilusório nos objectivos e injusto nos meios. O tempo que vivemos já não é o destas soluções, que tudo endossam às virtudes e aos vícios, ora do neoliberalismo ora do Estado providência.

O memorando é o resultado, e sem dúvida também o retrato, do que é hoje a lentidão da política, de todas as políticas. E traduz bem a incapacidade de qualquer política, nacional ou europeia, para fazer frente à "financeirização" do mundo a uma estonteante velocidade, ilustrando o enorme abismo que se cavou entre o mercado e o Estado de direito, entre a finança e a democracia.

Esta última desgraça portuguesa teve certamente várias causas. Mas a mais directa - e mais patética - foi a decisão do nosso primeiro-ministro de apostar tudo em resistir, como se a resistência pudesse hoje em dia ser uma política.

Quando ouvimos o slogan "Defender Portugal" ocorre-nos a imagem de um herói corajoso, de uma acção decidida, de uma luta vigorosa. Mas na verdade, e como aliás rapidamente se viu, esta "defesa" não passou de uma teimosa e irresponsável negação da realidade. Uma perda de tempo, que é justamente o que os mercados menos suportam. Porque é preciso perceber que, enquanto os políticos fazem contas em termos de liquidez, ou da falta dela, os traders pensam logo em solvência e em bancarrota - e agem na ordem dos microssegundos. Num mundo em que as fronteiras desapareceram e em que o espaço deixou de contar, só o tempo manda, e o curto prazo torna-se a bitola dominante.

Embora nós, europeus, percebamos cada vez melhor que estamos num barco que mete água por todos os lados, procedemos como se fosse melhor para todos não falar muito nisso. Como se o silêncio pudesse conduzir ao milagre. Em vez de agir, fazemos figas.


Olhamos para a Grécia e vemos os resultados da receita que agora nos foi prescrita. Mais suave, diz-se, com o sorriso amarelo dos condenados. Mas lá está a mesma matriz de austeridade cega, com todos os seus dogmas, toda feita de pura contabilidade e com a mesma indiferença cínica em relação ao único ponto que verdadeiramente interessa: o crescimento.

O nosso pacto com a Europa reduziu-se, afinal, a um verdadeiro pacto com o Diabo, como se o crédito fosse a sua forma contemporânea. A União Europeia deixou de ser uma União de Estados e tornou-se numa associação de credores e devedores.

O memorando da troika não veio libertar-nos desse garrote. Veio, quando muito, aliviá-lo, juntando algumas exigências e garantindo-nos apenas uma coisa nos próximos tempos - a recessão.

Pusemo-nos bem a jeito, isso é que é a verdade. Porque este é também o saldo final da política do betão que nos últimos vinte anos governou Portugal: auto-estradas, estádios de futebol, etc. etc. etc. E sempre que se prometeu cortar com isso, e dar uma oportunidade à qualificação e a outras ambições, apenas se fez uma pausa, de resto pequena. A qualificação perdeu sempre e o betão apanhou tudo - energia, saúde, educação, tudo.

Os recursos naturais, as indústrias criativas, o turismo qualificado, o imenso potencial do mar, uma exigente qualificação do território, das instituições e das pessoas, tudo isto e muito mais foi sempre ignorado pelos apóstolos do betão, dos serviços e da finança. Construímos assim um país mitómano, em que a "mania das grandezas" tomou conta do Estado e dos políticos, dos cidadãos e da sociedade civil. Infelizmente, o "socialismo moderno" de Sócrates, deslumbrado com as novas tecnologias e as finanças, foi mais do mesmo.


E, como foi tudo a crédito, ficámos nas mãos dos credores. Aqui, note-se que o problema não é só a dívida. Os japoneses sabem-no bem, com a sua gigantesca dívida pública acima dos 200%. O problema é sobretudo a quem é que ela pertence, ou seja, a quem é que devemos. No caso do Japão a dívida é deles (o que os torna imunes às pressões dos ratings), e no caso português a dívida é, em mais de três quartos, alheia.

Sabendo isto, era fácil perceber bem cedo que um dia o cobrador ia bater à porta. No meio da aflição da bancarrota, a troika ganhou uma aura salvadora de "santíssima trindade", mas no fundo não passa de uma equipa de três cobradores... de fraque completo. Porque é sobretudo isto que pretende o memorando: lembrar a factura, dar uma folga e garantir o retorno de todos os empréstimos.

Nesta campanha eleitoral, os programas e os debates juntam-se ao memorando da troika, mas tudo soa a vazio. Na verdade, falta a compreensão não só do que aconteceu mas sobretudo do que se precisa. Talvez porque, como um dia escreveu Agustina Bessa-Luís, "o português se sente à vontade com o que não entende". Talvez!


Manuel Maria Carrilho, DN, Maio 2011








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