quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Austerizados, uni-vos!

por Sandra Monteiro

A Proposta de Lei de Orçamento de Estado para 2013 e os planos que o governo de Pedro Passos Coelhos tem em marcha para «refundar» o Estado social formam um condensado por demais explícito de um agravamento insuportável das condições de vida da esmagadora maioria dos portugueses, no próximo ano e nos muitos que se seguirão.

Como foi isto possível? A pretexto de uma dívida pública criada pela resposta à crise originada no sistema financeiro, foi-se impondo um estado de excepção e de necessidade que tudo parece justificar: do desemprego como programa até às reduções de salários e pensões; da venda e concessão a privados de bens e serviços essenciais até à aceitação de uma suspensão da democracia que usurpa os instrumentos de governação sem os quais uma comunidade política não pode ser sujeito das suas escolhas.

O regime austeritário é tudo isto. Uma engenharia neoliberal, aplicada a Estados colaborantes, que subjuga pelos instrumentos da dívida e que, desta vez, atinge países sem autonomia monetária, com estruturas produtivas frágeis e com padrões de especialização particularmente prejudicados pela inserção numa União Europeia disfuncional e pela pertença a uma moeda forte. É a mais recente mutação do capitalismo que, conseguindo manter intacto o poder e os lucros do sistema financeiro, dá um salto de gigante na capacidade de transferir recursos e rendimentos de quem trabalha para quem especula e se apodera da maior parte da riqueza.

As reformas e ajustamentos estruturais que estão a ser impostas não são simples alterações dentro do regime em que temos vivido desde a instauração da democracia, do Estado de direito e de uma ordem constitucional que associou liberdade política, sustentabilidade económica e igualdade social. Associou porque são indissociáveis, apesar de todas as falhas (bem patentes nos números das desigualdades).

Com efeito, o regime instaurado com o 25 de Abril e com a Constituição não é compatível com a dissociação das suas várias finalidades e com a destruição dos instrumentos da sua concretização. O exercício da governação por entidades – internas ou externas – cujo negócio é o lucro não é compatível com a democracia política. A utilização dos recursos de um país para alimentar o capital financeiro não é compatível com uma economia sustentável. A destruição da sustentabilidade económica do tecido produtivo e dos instrumentos ao dispor do Estado social (da política financeira à provisão pública de serviços de qualidade, universais e gratuitos) não é compatível com uma sociedade igualitária.

Mas é neste sentido que vão as reformas e os ajustamentos estruturais que estão a ser feitos. Eles mostram como uma União Europeia estruturalmente neoliberal e disfuncional pode destruir povos inteiros, mas também como estes têm dificuldade em encontrar formas de resistência eficazes. Para isso contribuem muitos factores, do papel embalador da comunicação social dominante, nos antípodas do esclarecimento dos cidadãos, até à persistente fragilidade das esquerdas: a uma parte dela falta apresentar uma estratégia para aceder à governação; a outra parte falta apresentar soluções para a sustentabilidade financeira do Estado social, sem cedências aos princípios da universalidade, gratuitidade e qualidade na prestação dos serviços.

O Orçamento de Estado para 2013 e a anunciada reconfiguração assistencialista do Estado social são a imagem do aproveitamento neoliberal daquelas fragilidades para criar uma outra sociedade. Nela são recriados o pior de dois mundos. Num quadro de desemprego e precariedade, a fiscalidade deixa de fazer parte de um contrato que os povos compreendiam. Apesar de tudo, ela queria-se progressiva, exercida apenas sobre montantes que estivessem para lá de rendimentos mínimos assegurados e reflectiam a vontade muito partilhada de se abdicar de uma parte significativa dos rendimentos (do trabalho…) em troca de serviços prestados pelo Estado (educação, saúde, segurança social, transportes, energia, comunicação e informação).

No novo regime austeritário, pelo contrário, pagam-se cada vez mais impostos em troca de cada vez menos. Desviados do combate às desigualdades, da elevação dos níveis de saúde e educação da população, da garantia da solidariedade inter-geracional e da coesão territorial, os montantes recolhidos com os impostos são cada vez mais canalizados para o pagamento de uma dívida descontrolada e para aquilo a que Pierre Bourdieu chamava a mão direita do Estado (defesa e segurança, justiça, etc.), em detrimento da sua mão esquerda (as suas funções sociais). Pouco importa que o país já dedicasse, em comparação com a média europeia, uma parte demasiado reduzida do seu orçamento à saúde ou à segurança social e uma parte exagerada à defesa ou à segurança. Quando se criam sociedades cada vez mais desempregadas, pobres e desiguais, cresce a preocupação com os aparelhos destinados a conter e reprimir o protesto e a violência.

Não se pense que o neoliberalismo quer a reforma do Estado para lhe reduzir o peso. A mudança que se quer introduzir é antes de mais qualitativa e nem é necessariamente quantitativa. Isto é, a ideia não é acabar com o Estado, é usar os seus recursos (naturais, materiais, humanos, simbólicos e de poder) para os afectar a outras finalidades, privadas e particulares. Cortar «gorduras» ou «despesismos» do Estado, inclusive agora que a população está tão atordoada com o «massacre fiscal» e com o desmantelamento do Estado social, é manter flexibilidade suficiente para privatizar apenas quando há interesse do mercado e noutros casos engendrar complexas concessões e parcerias público-privadas – que pareçam cortes na despesa, mesmo que por elas se pague um preço insuportável. Os mais significativos desperdícios do Estado estão aqui.

A mudança de regime em curso nos países austerizados é suicidária. É um projecto para uma regressão social e uma recessão económica prolongadas, em Portugal e na Europa. Todos os povos serão prejudicados, todos os especuladores e rentistas terão feito excelentes negócios. É urgente arredar do poder a actual solução governativa e ouvir os portugueses em eleições, mas isso, por si só, não vai tirar o país do abismo. A multiplicação de greves e outras manifestações populares, em particular pela dimensão europeia historicamente inédita que o dia 14 de Novembro representa, traz a esperança de que, a par de mudanças em cada país, possam ocorrer viragens onde elas são fulcrais: na União Europeia e no euro. Quando se exclamar «Austerizados de todo o mundo, uni-vos!», vai ser preciso lembrar que grande parte deles se encontram em França, na Holanda ou na Alemanha.

 http://pt.mondediplo.com/spip.php?article891


quinta-feira 8 de Novembro de 2012

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