domingo, 7 de julho de 2013

Três tempos e uma crise política

por Sandra Monteiro

Acabar é uma arte. Não é fácil de fazer e, por isso, há tendência para a compreensão quando nem tudo corre bem. Mas o espectáculo do fim a que o governo de Pedro Passos Coelho e o presidente da República Aníbal Cavaco Silva decidiram pôr os cidadãos a assistir ultrapassa todos os limites do respeito, da racionalidade e do bom senso. Entre episódios de lenta agonia e outros de retumbante desmoronamento, o «espectador» dá por si a seguir as peripécias e os protagonistas de uma telenovela que não se sabe quando nem como termina. Mesmo que não consiga descortinar-lhe qualquer sentido e se sinta esmagado pelo absurdo, descobre em si uma teimosa esperança de, no enredo a que assiste, estar a jogar-se a resolução dos problemas reais com que se confronta: o desemprego, a precariedade, a emigração, a pobreza, a depressão, a angústia de todos os dias.

É esse o dever da política: resolver os problemas com que se confrontam as comunidades. Em democracia, essa resolução incumbe, designadamente, aos governos. E porque a democracia é um regime do povo e para o povo, quando os governos não cumprem essa função – e, por maioria de razão, quando agravam as condições de vida da maioria da população – devem ser afastados e substituídos por quem seja legitimado por novas eleições e novas soluções políticas. Já estávamos familiarizados com as dificuldades de isto acontecer nos regimes democráticos, tantas vezes mergulhados na fulanização da política e em meras alternâncias. Mas o regime austeritário eleva essas dificuldades a um patamar que desconhecíamos em democracia, a tal ponto que é legítimo afirmar que ele é estruturalmente anti-democrático.

Neste regime de austeridade instaurado pela crise financeira, e depois económica e social, a crise política não é um acontecimento isolado no tempo nem uma instabilidade passageira que possa ser, por si só, resolvida com a substituição dos protagonistas políticos. Por muito que haja alturas, como agora, em que seja amplamente consensual que sem a substituição desses protagonistas, devolvendo a palavra ao povo em eleições, não haverá qualquer possibilidade de inverter o rumo de empobrecimento e recessão de que é feito o enredo trágico em curso.

Neste regime, aquilo a que chamamos crise política é a fase que se instala quando se torna evidente para a maioria da população que a resposta austeritária, seja ela aplicada com maior ou menor convicção, está estruturalmente desenhada para rebaixar as condições de vida dos que menos têm, das classes populares às classes médias e aumentar os lucros dos mais poderosos. A crise política não é, neste sentido, um mero episódio com estes ou aqueles protagonistas, mais «incompetentes» ou com mais «sensibilidade social», mas uma etapa que tenderá a repetir-se com vários actores, por vezes por causa deles e outras apesar deles. Em processo de aceleração, poderá triturar lideranças políticas, umas atrás das outras, como se de uma linha de montagem se tratasse, e poderá determinar a morte, o rearranjo e até o surgimento de novos actores político-partidários, deixando porventura irreconhecível a paisagem que hoje conhecemos, em Portugal como noutros países.

A crise política é, portanto, um efeito: a fase de descrédito público do austeritarismo. Não é, ao contrário do que agora se repete no espaço público para limitar os termos do debate e as soluções alternativas disponíveis, a causa de novas e desastrosas escaladas, que aliás eram há muito previsíveis: um segundo resgate, mais austeridade, mais desemprego, mais recessão, mais dívida e mais impagável, etc. Diga-se de passagem, o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar traduziu bem este sentido da crise política como fase na carta de demissão de 1 de Julho, quando fez remontar a sua decisão à «erosão significativa no apoio da opinião pública às políticas necessárias ao ajustamento orçamental e financeiro» e à posição do Tribunal Constitucional sobre o orçamento em 2012 (o descrédito é também institucional) [1].

Esta fase, cuja duração é impossível de prever, não terminará com a substituição de sucessivos protagonistas que interpretem o mesmo guião – apenas tenderá a encurtar os ciclos em que estes actuam. A crise política só terminará quando este desacreditado mas ainda poderoso austeritarismo der lugar a outras escolhas, num processo que exigirá uma clara compreensão dos bloqueios e das potencialidades nacionais e internacionais, que envolverá escolhas difíceis orientadas para o bem-estar da maioria, e que implicará alianças políticas e sociais fortes.

Como actuar durante esta fase? O ritmo marcado pelos poderes dominantes – económico-financeiro, político e mediático – contribuirá para que as atenções se concentrem na instabilidade política, na intriga politiqueira, na sequência alucinante das alterações dos juros e das ameaças dos «mercados», no tempo curto e plano. É importante compreender esta sua actuação, porque ela repetir-se-á com tanto maior intensidade quanto mais possibilidades houver de afrontar os interesses desses poderes. Mas é também fundamental dar espessura a esse tempo do imediatismo galopante, compreendendo-o e actuando no curto, no médio e no longo prazo.

Neste sentido, são três as áreas em que se joga o sucesso das políticas futuras de quem estiver determinado em inverter o rumo seguido pela coligação liderada por Passos Coelho e governar em benefício da maioria: a austeridade, a dívida e a inserção europeia. Acabar com as políticas de austeridade no mais curto prazo é condição absoluta para interromper a espiral recessiva e regressiva, mas não será suficiente para assegurar qualquer trajectória sustentável, nem sequer no médio prazo. Para que isso aconteça é imprescindível renegociar em profundidade a dívida, não apenas ao nível dos prazos de pagamento mas também dos juros e de parte muito significativa dos montantes, para que não passemos as próximas décadas a empobrecer cada vez mais para alimentar um sistema financeiro predatório. Mas isto também não basta, não numa perspectiva sustentável de longo prazo. Sem repensar as condições da inserção de Portugal na arquitectura institucional e monetária europeia apenas se assistirá à perpetuação de uma trajectória desastrosa, sobretudo para as classes populares, à escala nacional e europeia.

Todas estas áreas e estes tempos interagem entre si, influenciando-se mutuamente. Austeridade, dívida e inserção europeia têm de ser objecto de uma acção política integrada, de modo a propiciar a formação de alianças claras e fortes. A todos os actores político-partidários é pedida uma definição da sua disponibilidade para afrontar as estruturas europeias e os condicionalismos que os credores impõem no âmbito de um lucrativo projecto ideológico orientado para a destruição do Estado social, da democracia e do trabalho com direitos. É tempo de pôr fim ao disfuncionamento total em que o país e a Europa se estão a afundar. As greves e demais protestos que os trabalhadores portugueses têm feito, em condições de enorme dureza, já apontaram o caminho que desfaz falsos consensos e anuncia um novo começo.

sexta-feira 5 de Julho de 2013

http://pt.mondediplo.com/spip.php?article934 

Sem comentários:

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...