segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A degradação ideológica da direita: três componentes (3)


por Daniel Vaz de Carvalho [*]

 
Um homem de cultura é simplesmente aquele que tem consciência da era em que vive. Essa tomada de consciência exige uma ampla compreensão da História da humanidade, não apenas para bem do conhecimento, mas para permitir ao homem de cultura perceber a inevitabilidade do progresso histórico e até contribuir para ele. [1]
 
3 – Obscurantismo, a cultura como "não utilidade"

Podemos dizer que o objetivo principal do obscurantismo é impedir os trabalhadores de reconhecerem as relações económicas e sociais, as relações de produção, em que estão inseridos. Toda a economia política do sistema capitalista está baseada na alienação do conceito de valor, na alienação dos resultados do trabalho: "Trabalho alienado, significa vida alienada, ser humano alienado, ser humano desapossado." [2] O obscurantismo está ao serviço da alienação.

O ódio à cultura manifesta-se no ataque aos professores, na programada destruição do ensino público igualitário e inclusivo, no abandono do apoio das atividades culturais para ficarem entregues ao "mercado". Nos cortes de verbas para a investigação, alegadamente para serem entregues a empresas. No desprezo com que trata os investigadores, ditos "bolseiros", em condições de precariedade, insegurança e salários de miséria para as suas funções e qualificação.

Para o governo do PSD-CDS, cultura é "despesa", educação é "despesa", a investigação é "despesa", tal como o são a saúde ou eliminação da pobreza. São estas afinal as "gorduras do Estado" de que farisaicamente falavam. Em contrapartida, baixar o IRC, subsídios e benefícios fiscais ao grande capital passam a ser "investimento".

As universidades debatem-se com falta de verbas e funcionários. A política é serem postas em concorrência umas com as outras e funcionarem de acordo com os interesses das empresas. Para a direita/extrema-direita no governo o quadro social foi perdido, procurando-se que a cultura seja submetida aos interesses do capital.

O grande matemático e democrata (um comunista) Bento Jesus Caraça, no seu texto "A cultura integral do individuo", fala-nos da cultura globalmente entendida como fator decisivo na capacidade de evoluir e melhorar humana e materialmente. Eram estas as teses a ser ensinadas e divulgadas nas escolas. Mas não, o que temos são as doutrinas utilitaristas e elitistas do ministro Crato.

Propagandista do ultraliberalismo e do governo, o sr. Camilo Lourenço afirmava que os professores de História não são necessários, pois a História não tem utilidade para a economia. Muito provavelmente foi isto que aprendeu nos cursos que frequentou nos EUA [3] A importância das disciplinas ditas de humanidades é fundamental para o desenvolvimento económico. A produção e o seu desenvolvimento implicam um trabalho de equipa. A necessidade de compreensão dos fatores humanos é um dado fundamental da gestão e do progresso. Não entende-lo é uma boçalidade.

A especulação, os "mercados", são totalmente alheios à condição humana, as suas considerações e estratégias estão num vazio moral: homens e mulheres vistos como coisas, peças de uma máquina para dar lucro, em que a sua "utilidade" se valoriza na medida em que se reduzam os seus custos salariais. É a moral da "herren volk", a moral de senhores, uma moral da propriedade e do dinheiro para a qual direitos laborais são "privilégios" e a Constituição não é para aplicar no que prejudique a oligarquia.

O desprezo pelos interesses do país e do seu povo é justificado porque "Portugal é como alguém que esteve a beber durante 10 anos e que depois entra o médico e diz você vai ter de deixar de beber e fazer dieta. Antes sentíamo-nos bem. Estando sóbrios a falta da bebida faz-nos sentir mal. (Agora) é preciso cortar mais para pagar juros" [4]

Os gregos acreditavam que os deuses enlouqueciam os mortais para os levar à perdição. Pelos vistos, os "mercados" "embebedam-nos". O obscurantismo faz o seu caminho, deformando a realidade, usando a boçalidade, um humor soez, inconsequente, agressivo na ausência de argumentos. É uma estratégia típica da extrema-direita.

Para a direita/extrema-direita a bebedeira ter-se-á iniciado no 25 de Abril: "Há 40 anos que andamos nisto" [5] É como quem diz: queriam saúde, educação pública para todos? Emprego com direitos? Salários e reformas decentes? Tudo isto como manda a Constituição? Só podiam estar bêbados! No capitalismo isso é para quem pode e a prioridade é para a agiotagem e a especulação.

Sim, para esta gente agora estamos sóbrios, cumprimos os "nossos compromissos". Em 2009 pagámos de juros 4 800 M€, de 2014 a 2018 está previsto pagar em média cerca de 7 800 M€ e até 2019 cortar mais 7 000 M€ de austeridade, tudo para satisfazer uma corrupta e insaciável finança. Entretanto com a nossa "sobriedade" a dívida passou de 94% para 133% do PIB. Quanto mais pagamos mais devemos!

Os trabalhadores com contratos de trabalho são diabolizados. É afirmado que "os transportes públicos funcionam bem para quem lá trabalha, com bons salários, reformam-se cedo. Numa empresa privada é preciso agradar aos clientes, têm de ser competitivos: numa empresa pública é diferente: os incentivos em empresas públicas são para quem trabalha lá porque são os que podem fazer greve. Quando há tanta gente que se emprega no Estado não há incentivo a que se trabalhe bem. [4]

O ódio aos trabalhadores e seus direitos revela-se na boçalidade e na mentira. As lutas dos trabalhadores do sector privado são escamoteadas da opinião pública tal como antes do 25 de Abril. Escondem-se lutas travadas nas indústrias do papel, na alimentar, metalurgia, material elétrico e eletrónico, na têxtil etc. Nas cantinas, nos hotéis, nos correios, nas empresas privadas de transporte de passageiros, na comunicação social, etc. Tal como as lutas pelos baldios, dos produtores de leite, dos vitivinicultores do Douro, dos estudantes, etc.

Escamoteia-se que as empresas privadas de transportes públicos são sorvedouros de dinheiros públicos, enquanto adequados financiamentos e compensações são negados às empresas públicas. Propagandeia-se a superioridade da iniciativa privada um mito desmentido pelas sucessivas fraudes e falências bancárias, como nos casos GES, BPN, BPP, BANIF. Supostos sucessos são feitos à custa do Estado, como as PPP, a GALP, a REN, a ANA, a EDP. [5] A despesa com PPP atinge €1,6 mil milhões em 2014, €1,8 mil milhões em 2015!

O obscurantismo, promove o ódio ao que é público e coletivo: tudo deve ser privatizado e gerido de acordo com os interesses do grande capital. Ignora a corrupção e as ilegalidades na banca, afirmando-se que há corrupção porque o Estado tem tanto peso, quando é o resultado da captura dos interesses públicos pela oligarquia monopolista e financeira. Como foi divulgado, 25 elementos do GES/BES fizeram parte de governos. Isto sem contar com deputados e outros cargos políticos. No BPN estava alojada toda uma clique do PSD.

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Enquanto a miséria aumenta, centenas de milhares de famílias vêm reformas, salários, contas bancárias penhoradas por dívidas, para a direita/extrema-direita finalmente «estamos a viver de acordo com as nossas possibilidades» afirmando-se que a economia deve ser "libertada do peso crescente do Estado Social".

A economia tem é de ser libertada da livre transferência de capitais e rendimentos, libertar-se do garrote do euro e dos "paraísos fiscais", paraíso para os oligarcas, inferno para a democracia e os cidadãos. A título de subvenções públicas os apoios estatais em 2012 a empresas e instituições atingiram 2 241 M€. Os "estágios" são mais uma forma dos contribuintes subvencionarem grandes empresas com trabalho a custo zero, à parte uma irrisória verba para transporte. Com outros critérios do BCE poderíamos poupar por ano 4 a 5 mil milhões de euros de juros.

Exemplo do obscurantismo vigente, é afirmar que um país deve ser gerido como uma boa dona de casa faz. Falso. Ignora-se o que sejam finanças públicas, o papel do OE na economia e a possibilidade de um país criar moeda, o que não acontece à dona de casa. Claro que na UE isso foi entregue *a banca privada, via BCE, sem qualquer justificação teórica e desastrosas consequências práticas orientando o crédito para as atividades especulativas. Se a propaganda diz que a economia política deve ser feita à medida da "dona de casa", para que são necessários pomposos títulos académicos? Para entregar o país às transnacionais e estas dizerem para onde temos de ir e como?

O obscurantismo serve-se da mentira. Os mercados são considerados entidades absolutas, equilibradas e racionais. Na realidade o que existe são "relações de mercado" correspondentes a determinadas relações de produção e determinadas formações económicas. Mascara-se a existência de monopólios e monopsónios. Os fornecedores das grandes cadeias de distribuição são sujeitos a constrangimentos e pressões para fornecerem os seus produtos. Os descontos e promoções "oferecidos" são pagos pelos fornecedores. Um estudo da Corporatewatch – UK mostrava que os oligopólios da grande distribuição chegam a absorver 88%.do preço final, cabendo apenas 12% à produção;

Os "mercados" são dominados pela oligarquia, tendo ao seu serviço os políticos neoliberais da troika externa e da interna do "arco da governação". Afirmar que "o mercado somos todos nós", é um exemplo de obscurantismo. Omite-se que na "economia de mercado" há o que se designa por "poder de mercado", o poder financeiro detido pelo grande capital.

A defesa do euro e dos tratados da UE são exemplos de obscurantismo e manipulação: procura-se mascarar pela coação e o medo a catástrofe em curso. É o argumento dos fanáticos derrotados pela realidade. Não admira, pois, que tal como no fascismo, que encomendava artigos elogiosos a jornais estrangeiros, o governo tenha pago a técnicos da OCDE um texto de propaganda apresentando-o – falsamente – como "um relatório da OCDE"!

A direita/extrema-direita não se conforma com o regime democrático. Os ataques ao TC são a tentativa de liquidar a Constituição, invocando tratados europeus e, claro, os "mercados", para destruir pela raiz o projeto libertador do 25 de Abril. O sr. C. Lourenço afirmava na TVI em tom indignado contra o TC, que "a troika quando cá chegou devia ter dito: meus senhores, façam favor de mudar a Constituição". Para satisfazer a agiotagem internacional Portugal teria de deixar de ser um Estado de direito democrático.

Para este programado golpe de Estado, a direita/extrema-direita, reivindicava uma maioria, um governo, um Presidente. Pela mentira e pela alienação promovida pela comunicação social controlada, obtiveram-no. Concluem que não basta: precisam de um TC ao seu serviço. Porém, quando o tivessem, chegariam à conclusão, tal como no fascismo, que não dispunham do povo, quereriam então implementar uma nova PIDE/DGS.

Com argumentos de um obscurantismo digno do pensamento medieval, uma proposta do PCP para que a Constituição fosse ensinada nas escolas foi rejeitada pela maioria: os alunos não estariam preparados para a entender… A boçalidade chega ao ponto de ser afirmado que países que não têm Constituição funcionam melhor que o nosso. Seria bom dizer quais… Se se referem ao Reino Unido, fazem por ignorar que na Inglaterra a Magna Carta foi instituída no século XIII.

Onde estão os jovens dos anos 80 e 90 que acreditaram nas tretas dos partidos da troika sobre a "modernidade", o sindicalismo que "não queria saber dos jovens", o crédito fácil e barato da "Europa" e do euro, que dava milhões para consumir o que "livremente" era importado? Muitos deles abstêm-se nas eleições e dizem mal dos "políticos", estão desempregados ou precocemente com reformas de miséria. Mas não serão também muitos dos que apoiaram a galhofa da "cassete dos dinossauros" quando se alertava para a beberagem neoliberal que era impingida?

A mentira só tem poder se decidimos aceita-la, por isso o obscurantismo e a boçalidade procuram criar medos e exercer chantagem colocando as pessoas em estado passivo, de forma a não tomarem decisões racionais de acordo com os seus interesses, mas sim em função desses medos e dessa chantagem. Tal não se afasta dos preceitos fascistas.

Leonor Pimentel , a revolucionária portuguesa que no final do século XVIII combateu pela República na Itália, teria dito "Não posso perdoar aqueles que só pensam na sua própria glória ou bem-estar. Pensam ser mais civilizados. São desprezíveis. Malditos sejam todos eles". [7]
 

Notas
[1] Naguib Mahfouz, prémio Nobel da Literatura, em entrevista à revista cultural egípcia Prism em 1989.
[2] Marx, Manuscritos de 1844, p.72 e 71, Ed. Avante
[3] expresso.sapo.pt/camilo-lourenco-a-historia-e-a-utilidade-economica=f790202 . C L tem cursos de jornalismo pela Universidade de Columbia, Nova Iorque e Michigan; com especialização em jornalismo económico e financeiro.
[4] Apresentação do livro "O economista insurgente" na RT1 (Portugal no Coração) e TVI (Você na TV) em 20 e 22 de maio, respetivamente.
[5] Maria João Avilez, observador.pt/opiniao/ja-se-pode-dizer-bem-de-passos-coelho/
[6] Ver "O mito da gestão privada", www.ionline.pt/iopiniao/mito-da-gestao-privada ,
[7] Em "A Amante do Vulcão", Susan Sontag, ed. Quetzal, 1992. Leonor foi enforcada em Nápoles após a reação recuperar o poder com apoio britânico.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/


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