quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Será que o FMI anexou a Ucrânia?


por Michael Hudson [*]
entrevistado por Sharmini Peries
 
Intermediações. SHARMINI PERIES, Produtor Executivo da TRNN: Damos boas vindas à intervenção de Michael Hudson em The Real News Network. Foi acordado um cessar-fogo na Ucrânia Oriental, após uma maratona negocial de 17 horas entre o presidente russo Vladimir Putin e o presidente ucraniano Petro Poroshenko. Eles foram ladeados por outros líderes europeus que se mantiveram vigilantes. A Rússia e a Ucrânia podem ter muitas diferenças, mas o que eles têm em comum é uma crise económica que se agiganta, com preços do petróleo a mergulharem do lado russo e uma guerra muito cara com que não contavam do lado ucraniano. Para conversar sobre tudo isto está aqui Michael Hudson. Ele é um distinto professor e investigador de teoria económica da Universidade de Missouri-Kansas City. O seu próximo livro intitula-se "Matando o hospedeiro: Como parasitas financeiros e a servidão da dívida destruíram a economia global" ("Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Bondage Destroyed the Global Economy").
Michael, obrigado por estar aqui connosco.

MICHAEL HUDSON: É bom estar convosco.

PERIES: Michael, numa entrevista recente publicada na revista The National Interest você disse que a maior parte do media cobrem a Rússia como se ela fosse a maior ameaça à Ucrânia. A história sugere que o FMI pode ser mais perigoso. O que quis dizer com isso?

HUDSON: Antes de mais nada, os termos com que o FMI concede empréstimos exigem mais austeridade e uma retirada de todos os subsídios públicos. A população ucraniana já está economicamente devastada. A condição que o programa do FMI estabelece para fazer empréstimos à Ucrânia é que deve reembolsar as dívidas. Mas ela não tem a capacidade de pagar. Assim, há apenas um meio para fazer isso e esse meio é o que o FMI tem dito à Grécia e outros países para aplicar: Tem de começar a liquidar seja o que for que reste no domínio público do país; ou seja, fazer os seus principais oligarcas a tomarem parcerias com investidores americanos ou europeus, de modo a que eles possam comprar direitos a monopólios na Ucrânia e permitirem a extracção de renda.

Isto é o ataque duplo padrão do FMI. A pancada número um é: aqui está o empréstimo – para pagar aos seus accionistas, de modo que agora deve a nós, FMI, a quem não pode cancelar dívidas. Os termos deste empréstimo seguem o Guia Ficcional: que você pode pagar a dívida externa obtendo um excedente orçamental interno, cortando despesa pública e provocando uma depressão ainda mais profunda.

Esta ideia de que dívidas externas podem ser pagas espremendo receitas de impostos internos foi contestada por Keynes na década de 1920 ao discutir as reparações alemãs. (No meu livro Trade, Development and Foreign Debt dediquei um capítulo a rever a controvérsia). Não há desculpa para cometer este erro – a não ser que o erro seja deliberado e esteja destinado a fracassar, de modo a que o FMI possa então dizer que foi uma surpresa para toda a gente e não é culpa de ninguém, o seu "programa de estabilização" desestabilizou ao invés de estabilizar a economia.

A penalidade por seguir esta teoria económica lixo deve ser paga pela vítima, não pelo vitimizador. Isto faz parte da estratégia do FMI de "culpar a vítima".

O FMI lança então a sua pancada Número Dois. Ele diz: "Ah, você não pode nos pagar? Lamento que as nossas projecções estivessem tão erradas. Mas você tem de encontrar algum meio para pagar – entregando quaisquer activos que a sua economia ainda possa ter em mãos internas.

O FMI tem estado errado na Ucrânia anos após ano, quase tantos quanto tem estado errado na Irlanda ou na Grécia. As suas receitas são as mesmas daquelas devastadas economias do Terceiro Mundo a partir da década de 1970.

Assim, o problema agora torna-se apenas um: o que a Ucrânia vai ter de vender para pagar as dívidas externas – incorridas sobretudo para travar a guerra que devastou a sua economia.

Um activo que investidores estrangeiros querem é a terra agrícola ucraniana. A Monsanto tem estado a comprar na Ucrânia – ou melhor, a arrendar sua terra, porque a Ucrânia tem uma lei contra a alienação da sua terra agrícola a estrangeiros. E como matéria de facto, a sua lei é muitíssimo semelhante àquela, como informa o Financial Times, que a Austrália está a querer fazer para impedir compras chinesas e americanas de terra agrícola. [1]

O FMI também insistir em que países devedores desmantelem regulamentações públicas contra investimento estrangeiro, bem como regulamentos de protecção ao consumidor e protecção ambiental. Isto significa que o que aguarda a Ucrânia é uma política neoliberal que garantidamente tornará a situação ainda pior.

Nesse sentido, finança é guerra. A finança é a nova espécie de guerra, a utilização da finança e das vendas forçadas numa nova espécie de campo de batalha. Isto não ajudará a Ucrânia. O que promete é levar a mais uma crise mais adiante, muito rapidamente.

PERIES: Michael, vamos dissecar a dívida nesta crise. A guerra levou a Ucrânia a uma crise mais profunda. Fale acerca da devastação que tem provocado e o que eles têm de fazer além do que o FMI está a tentar impor-lhes.

HUDSON: Quando Kiev foi à guerra contra a Ucrânia Oriental, ela combatia primariamente a região de mineração de carvão e a região exportadora. Trinta e oito por cento das exportações da Ucrânia são para a Rússia. Mas grande parte desta capacidade exportadora foi bombardeada até deixar de existir. Além disso, as companhias eléctricas que alimentavam com electricidade as minas de carvão foram bombardeadas. Assim, a Ucrânia não pode sequer abastecer-se a si própria com carvão.

O que é tão gritante acerca de tudo isto é que apenas algumas semanas atrás, em 28 de Janeiro, Christine Lagarde, a chefe do FMI, disse que o FMI não faz empréstimos a países que estão envolvidos em guerra. Isso seria financiar um lado ou o outro. Mas a Ucrânia está envolvida numa guerra civil. A grande questão, portanto, é quando o FMI começará a libertar o empréstimo que tem sido discutido.

Além disso, os artigos do estatuto com o FMI dizem que ele não pode fazer empréstimos a um país insolvente. Assim, como é que pode participar de um empréstimo de salvamento à Ucrânia se, primeiro, o país está em guerra (a qual tem de cessar totalmente) e, segundo, está insolvente.

A única solução é a Ucrânia reduzir suas dívidas a investidores privados. E isso significa um bocado de investidores de hedge funds contestatários. O Financial Times de hoje tem um artigo a mostrar que um investigador americano sozinho, Michael Hasenstab, tem US$7 mil milhões de dívidas da Ucrânia e quer especular nisso, juntamente com o Templeton Global Bond Fund. [2] Como a Ucrânia vai tratar os especuladores? E então, finalmente, como é que o FMI vai tratar o facto de que o fundo soberano da Rússia emprestou €3 mil milhões à Ucrânia em termos fortes através do estabelecido no acordo de Londres que não pode ser amortizado? Será que o FMI vai insistir para que a Rússia sofra o mesmo corte (haircut) que está a impor sobre os hedge funds? Tudo isto vai ser a espécie de conflito que vai exigir ainda muito mais esforço do que as soluções que vimos adoptadas nos últimos dias na frente de batalha militar.

PERIES: Então, como poderia a Ucrânia imaginar uma saída da crise?

HUDSON: Ela provavelmente imagina um mundo de sonho na qual sairá da crise com o Ocidente a dar-lhe US$50 mil milhões e a dizer: aqui está todo o dinheiro de que precisa, gaste-o como quiser. Esta é a extensão da sua imaginação. É fantasia, naturalmente. É viver num mundo de sonho – excepto que há algumas semanas atrás George Soros propôs em The New York Review of Books e instou o Congresso e "o Ocidente" a darem US$50 mil milhões à Ucrânia e encararem isso como um pagamento inicial aos militares ou à Rússia. Bem, disse Kiev imediatamente, sim, nós só os gastaremos com armas defensivas. Defenderemos a Ucrânia até o fim até à Sibéria quando exterminarmos os russos.

Hoje um editorial do Financial Times dizia, sim, damos à Ucrânia os US$50 mil milhões que Georges Soros pediu. [3] Vamos nos habilitar a fim de ter bastante dinheiro para combater a Nova Guerra Fria da América contra a Rússia. Mas os europeus continentais dizem: "Espere um minuto. No fim disto, não haverá mais ucranianos a combater. A guerra pode mesmo propagar-se à Polónia e alhures, porque se o dinheiro que é dado à Ucrânia é realmente para o que a administração Obama e Hillary e Soros estão todos a pressionar – ir à guerra com a Rússia – então a Rússia vai dizer: 'OK, se estivermos a ser atacados por tropas estrangeiras, vamos ter não só de bombardear as tropas, mas os aeroportos de onde elas estão a vir e as estações ferroviárias por onde passam. Vamos estender nossa própria defesa na direcção da Europa'."

Aparentemente há informações de que Putin disse à Europa: olhe, tem duas opções diante de si. Opção um: a Europa, Alemanha e Rússia podem ser uma área muito próspera. Com matérias-primas da Rússia e tecnologia europeia, podemos ser uma das áreas mais prósperas do mundo. Ou, opção dois: Você pode ir à guerra connosco e pode ser liquidada. Faça a sua escolha.

PERIES: Michael, tempos interessantes e complexos na Ucrânia, bem como no FMI. Obrigado por falar connosco em The Real News Network
14/Fevereiro/2015
 


Notas
[1] Jamie Smith, "Australia cracks down on foreign farm and property investors," Financial Times, February 12, 2015.
[2] Elaine Moore, "Contrarian US investor with $7bn of debt stands to lose most if Kiev imposes haircut," Financial Times, February 12, 2015.
[3] "The west needs to rescue the Ukrainian economy," Financial Times editorial, February 12, 2015.


Ver também:

  • O desenlace na Ucrânia ( Ukraine denouement )

    [*] Professor de Teoria Económica, Universidade do Missouri, Kansas

    O original encontra-se em therealnews.com/... e em michael-hudson.com/2015/02/victims-pay/


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • Publicação em destaque

    Marionetas russas

    por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...