por Alexandre Abreu
Em ciência, a adequação à realidade é mais importante do que a simplicidade.
Em ciência, a adequação à realidade é mais importante do que a simplicidade.
Existe uma abordagem muito comum, aliás
dominante, à análise e ensino dos fenómenos económicos que assenta na
modelização dos problemas à escala individual e posterior generalização
para a escala da sociedade. Por outras palavras, que assenta na redução
dos fenómenos económicos - que são intrinsecamente sociais - a fenómenos
individuais em condições simplificadas, a fim de deduzir conclusões que
são depois extrapoladas novamente para a escala da sociedade como um
todo.
A chamada economia de Robinson Crusoé
constitui um exemplo paradigmático deste tipo de abordagem. Nesta
experiência conceptual, Robinson está só na ilha deserta e tem de optar
por dedicar o seu tempo ao lazer ou à recolha dos côcos de que depende a
sua sobrevivência - problema típico da teoria neoclássica do
consumidor, nomeadamente quando se assume adicionalmente que Robinson é
perfeitamente racional e que as suas preferências são dadas à partida.
Através de pequenas alterações de perspectiva ou
modificações ao modelo, a mesma abordagem permite modelizar também o
comportamento de Robinson enquanto produtor de bens alternativos (de
côcos ou peixes, por exemplo) ou introduzir a possibilidade da troca
(com um Sexta-feira igualmente racional e auto-interessado). Em todos os
casos, a ideia subjacente é que as conclusões que retiramos por dedução
a partir destes modelos hiper-simplificados da realidade constituem uma
forma adequada - a forma mais adequada - de compreendermos como, na sociedade como um todo, se organizam as questões da produção, do consumo e da troca.
É uma abordagem típica das correntes clássica,
neoclássica e austríaca da economia e, em termos mais gerais, designa-se
por "individualismo metodológico": o requisito de que as explicações
causais dos fenómenos sociais assentem nas acções, motivações e
preferências dos indivíduos. Não precisa de envolver côcos e
ilhas desertas. Noutros exemplos populares, temos o padeiro e o
merceeiro como produtores únicos de uma aldeia imaginária, ou o família e
os seus membros como representação da sociedade. Ou ainda, nas versões
mais austeras utilizadas em contexto académico, modelos povoados por
"agentes representativos" com as suas funções de utilidade ou produção.
Efectivamente, um dos desenvolvimentos mais relevantes
na macroeconomia nas últimas três ou quatro décadas foi a generalização
da exigência de que os modelos macroeconómicos assentem em microfundações
deste tipo. Não era esse o caso anteriormente: para a economia
dominante das décadas anteriores, a macroeconomia ocupava-se com
entidades (agregados, como o Consumo ou o Investimento totais) que
obedeciam a uma lógica própria e distinta do que se passava na esfera micro dos
indivíduos. Havia uma descontinuidade fundamental entre os níveis micro
e macro da economia, mas isso não era considerado preocupante. Da
década de 1970 em diante, porém, o individualismo metodológico estendeu o
seu predomínio à macroeconomia, impondo, como requisito para que as
explicações macreconómicas (neoclássicas ou neo-keynesianas, tanto faz)
sejam consideradas respeitáveis, que estas assentem em microfundações -
preferências e acções de agentes representativos.
Esta evolução da macroeconomia é muitas vezes
apresentada como um passo no sentido do rigor, da consistência lógica e
da cientificidade. Na realidade, porém, constitui um retrocesso. E o
motivo é relativamente fácil de explicar. O problema não reside no
recurso a modelos: toda a ciência recorre a representações simplificadas
da realidade, todo o pensamento científico abstrai de circunstâncias
particulares na formulação de explicações gerais. O problema surge,
porém, quando essas simplificação e abstracção implicam descartar
aspectos essenciais do fenómeno que se pretende explicar. E é isso mesmo
que sucede quando se salta para a escala individual em busca de
explicações para fenómenos intrinsecamente sociais: descarta-se factores
e propriedades que se manifestam à escala social sem que sejam
(facilmente) detectáveis ou teorizáveis à escala dos indivíduos.
Nas microeconomias de ilha deserta compostas por um
único náufrago plenamente racional, não existe desemprego involuntário -
mas nas economias reais este existe e é um problema central. Nas
aldeias imaginárias que contam com apenas um padeiro e um merceeiro
perfeitamente racionais e informados, o aumento da massa monetária
apenas aumenta o preço dos produtos e não o volume da produção - mas nas
economias reais a política monetária tem (em circunstâncias normais)
efeitos reais sobre o produto. Nas experiências conceptuais
hiper-simplificadas, não existe história ou relações de poder - mas nas
economias reais estes são fundamentais para a compreensão de tudo o que
se passa.
E isto nada deveria ter de espantoso. A existência de
propriedades emergentes associadas à mudança de escala é uma
característica geral do mundo que nos rodeia. Todos os fenómenos
biológicos são, em última instância, fenómenos químicos e físicos, mas
não faz sentido explicar a reprodução ou o envelhecimento com base em
teorias assentes no comportamento de protões e electrões. Da mesma
forma, todos os fenómenos sociais e económicos assentam ontologicamente
em indivíduos, mas procurar, no plano metodológico, compreendê-los ou
explicá-los enquanto tal é, mais do que uma perda de tempo, uma
contribuição para o obscurantismo.
É um obscurantismo típico das ciências que estão ainda
na sua infância. À medida que amadurecer, a Economia não deixará de
superar a sua fase Robinson Crusoé.