quarta-feira, 8 de abril de 2015

Esqueçam o Robinson Crusoé

por Alexandre Abreu

Em ciência, a adequação à realidade é mais importante do que a simplicidade.

Existe uma abordagem muito comum, aliás dominante, à análise e ensino dos fenómenos económicos que assenta na modelização dos problemas à escala individual e posterior generalização para a escala da sociedade. Por outras palavras, que assenta na redução dos fenómenos económicos - que são intrinsecamente sociais - a fenómenos individuais em condições simplificadas, a fim de deduzir conclusões que são depois extrapoladas novamente para a escala da sociedade como um todo.

A chamada economia de Robinson Crusoé  constitui um exemplo paradigmático deste tipo de abordagem. Nesta experiência conceptual, Robinson está só na ilha deserta e tem de optar por dedicar o seu tempo ao lazer ou à recolha dos côcos de que depende a sua sobrevivência - problema típico da teoria neoclássica do consumidor, nomeadamente quando se assume adicionalmente que Robinson é perfeitamente racional e que as suas preferências são dadas à partida.

Através de pequenas alterações de perspectiva ou modificações ao modelo, a mesma abordagem permite modelizar também o comportamento de Robinson enquanto produtor de bens alternativos (de côcos ou peixes, por exemplo) ou introduzir a possibilidade da troca (com um Sexta-feira igualmente racional e auto-interessado). Em todos os casos, a ideia subjacente é que as conclusões que retiramos por dedução a partir destes modelos hiper-simplificados da realidade constituem uma forma adequada - a forma mais adequada - de compreendermos como, na sociedade como um todo, se organizam as questões da produção, do consumo e da troca.

É uma abordagem típica das correntes clássica, neoclássica e austríaca da economia e, em termos mais gerais, designa-se por "individualismo metodológico": o requisito de que as explicações causais dos fenómenos sociais assentem nas acções, motivações e preferências dos indivíduos. Não precisa de envolver côcos e ilhas desertas. Noutros exemplos populares, temos o padeiro e o merceeiro como produtores únicos de uma aldeia imaginária, ou o família e os seus membros como representação da sociedade. Ou ainda, nas versões mais austeras utilizadas em contexto académico, modelos povoados por "agentes representativos" com as suas funções de utilidade ou produção.

Efectivamente, um dos desenvolvimentos mais relevantes na macroeconomia nas últimas três ou quatro décadas foi a generalização da exigência de que os modelos macroeconómicos assentem em microfundações deste tipo. Não era esse o caso anteriormente: para a economia dominante das décadas anteriores, a macroeconomia ocupava-se com entidades (agregados, como o Consumo ou o Investimento totais) que obedeciam a uma lógica própria e distinta do que se passava na esfera micro dos indivíduos. Havia uma descontinuidade fundamental entre os níveis micro e macro da economia, mas isso não era considerado preocupante. Da década de 1970 em diante, porém, o individualismo metodológico estendeu o seu predomínio à macroeconomia, impondo, como requisito para que as explicações macreconómicas (neoclássicas ou neo-keynesianas, tanto faz) sejam consideradas respeitáveis, que estas assentem em microfundações - preferências e acções de agentes representativos.

Esta evolução da macroeconomia é muitas vezes apresentada como um passo no sentido do rigor, da consistência lógica e da cientificidade. Na realidade, porém, constitui um retrocesso. E o motivo é relativamente fácil de explicar. O problema não reside no recurso a modelos: toda a ciência recorre a representações simplificadas da realidade, todo o pensamento científico abstrai de circunstâncias particulares na formulação de explicações gerais. O problema surge, porém, quando essas simplificação e abstracção implicam descartar aspectos essenciais do fenómeno que se pretende explicar. E é isso mesmo que sucede quando se salta para a escala individual em busca de explicações para fenómenos intrinsecamente sociais: descarta-se factores e propriedades que se manifestam à escala social sem que sejam (facilmente) detectáveis ou teorizáveis à escala dos indivíduos.

Nas microeconomias de ilha deserta compostas por um único náufrago plenamente racional, não existe desemprego involuntário - mas nas economias reais este existe e é um problema central. Nas aldeias imaginárias que contam com apenas um padeiro e um merceeiro perfeitamente racionais e informados, o aumento da massa monetária apenas aumenta o preço dos produtos e não o volume da produção - mas nas economias reais a política monetária tem (em circunstâncias normais) efeitos reais sobre o produto. Nas experiências conceptuais hiper-simplificadas, não existe história ou relações de poder - mas nas economias reais estes são fundamentais para a compreensão de tudo o que se passa.

E isto nada deveria ter de espantoso. A existência de propriedades emergentes associadas à mudança de escala é uma característica geral do mundo que nos rodeia. Todos os fenómenos biológicos são, em última instância, fenómenos químicos e físicos, mas não faz sentido explicar a reprodução ou o envelhecimento com base em teorias assentes no comportamento de protões e electrões. Da mesma forma, todos os fenómenos sociais e económicos assentam ontologicamente em indivíduos, mas procurar, no plano metodológico, compreendê-los ou explicá-los enquanto tal é, mais do que uma perda de tempo, uma contribuição para o obscurantismo.

É um obscurantismo típico das ciências que estão ainda na sua infância. À medida que amadurecer, a Economia não deixará de superar a sua fase Robinson Crusoé. 

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