sábado, 13 de junho de 2015

Marx no Largo do Rato


por César Príncipe
 

. No rescaldo do II Congresso Internacional Marx em Maio, [1] três personalidades convidaram Karl Marx para uma sessão de três perguntas. O rendez-vous decorreu no nº 2 do Largo do Rato. [NR]

Questão colocada por Mário Soares, presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, ex-primeiro-ministro, ex-presidente da República, ex-secretário-geral do PS, Conselheiro de Estado:

Como insere o Diálogo Inter-Religioso na crise de valores?

K. M. O problema não passa por dois mil anos de cristianismo a comer carne de vaca e a queixar-se do excesso de proteínas enquanto o hinduísmo continua a venerar a vaca e a morrer à fome. A questão não passa por dois mil anos de cristianismo a comer carne de porco enquanto o islamismo e o judaísmo consideram repugnante o consumo de suínos. É certo que as vacas e os cevados têm considerável peso em múltiplos domínios da agropecuária e do simbólico. Certo é que a besta sagrada continua a alienar grande parte da sapiens , colaborando, com irrefreável animus , na adulteração da ciência em magia, na substituição da filosofia pela idolatria. É óbvio que a apologética e a praxis religiosas são arsenais de balizamento cultural e controlo social. As mensagens da promissão e da punição seduzem milhões de seres com contas a acertar com o destino e a banca. Não será por mera coincidência que os animais de culto mais aceite ou ditado pelas armas têm uma tipologia comum: são mamíferos e possuem armações. Quer se trate do fedorento bode expiatório ou do ternurento cordeiro de Deus. Todavia, quem verdadeiramente decreta o Paraíso no além para os pobres e no aquém para os ricos não são Bíblias, não são Vedas, não são Corões, não são Talmudes. Não são concílios de deuses. Nem sequer é a Assembleia Geral das Nações Unidas. Muito menos é determinado pela Assembleia da República Portuguesa. Cabe ao Kapital eleger os dignos e os indignos da face divina e dos beneficiários do leite e do mel. Haverá, por consequência e previdência, que relativizar o poder religioso no além e no aquém. A supremacia do sobrenatural é exorbitada. No fundamental, aparente. Move-se num conjunto de peças articuladas. As organizações religiosas são sobretudo gestoras de anestésicos cristãos e combustíveis jhiad . O Kapital não deposita demasiada fé no transcendente. Há muito que confia mais numa grande televisão do que numa grande religião. O Kapital investe na narcodiversidade: a cocaína colombiana e a heroína afegã são tanto ou mais incentivados e cultivados do que o ópio do povo . E, monsieur , as receitas das drogas pesadas não andarão longe dos dividendos do céu. O mercado da aluci(nação) é muito competitivo e possessivo. O Império não dorme: mantém a manu militari na Colômbia e no Afeganistão e assegura as rotas de tráfico no planeta. Mas regressemos, mon ami , ao bestiário ocidental. Sem dúvida que o jumento teve o privilégio de testemunhar as manobras de parto da Virgem-Mãe. Consta que num estábulo palestino, num Dezembro, que marcou o início da nossa era. Mas regressemos, mon ami , ao bestiário oriental. Sem dúvida que os templos asiáticos elevaram o elefante a potestade. Contudo, confrontados os Livros Sagrados com os Livros Profanos, assomará sempre a Revelação do Anjo: os quadrúpedes que comandam as carteiras de expectativas, os mapas de intervenção e os negócios do Mundo não são celebrados nos santuários do Ocidente e do Oriente, mas na Casa Branca, no Capitólio, no Pentágono, nas Agências de Espionagem e Propaganda, na FED, em Wall Street, no BCE. Com efeito, politicamente estamos à mercê dos couces do burro Democrata e das trombas do elefante Republicano. De resto, Deus convive com o bezerro sem qualquer complexo, sem exarar uma declaração de voto. Mon ami , fui consultado. Questionar-vos-ei. Que raios e coriscos desfecham os Céus quando a NATO empreende um ataque do Kapital in nomine Dei ? Que denúncias trovejam os profetas, frequentemente desautorizados pelas maquinações da CIA e pelas devassas urbi et orbi da NSA? Monsieur , como podereis dialogar com o homo erectus – jurai – se reverenciais solípedes e proboscídeos? Monsieur , vós que falais do púlpito inter-religioso para o cosmos, que futuro decente esperará a cristandade – confessai – se o verdadeiro cristianismo (o que galvaniza as televisões e as rádios e os jornais e afervora as multidões) é encarnado por um ídolo com pés de barro, por Cristiano? Monsieur , a Igreja Católica acabará por canonizar este 13º apóstolo? Cristiano estará a caminho dos altares? Graças já muitas derramou. Milagres já vários operou. Por exemplo: pôs uma irmã a cantar. Crise de valores? Passa pelas Agências de Rating. Passa ao lado do Sumo Francisco, fetiche mediático e coqueluche de monsieur , credor de passe-partout na sua secretária, vis-à-vis com Obama. Este, obviamente, tem mais margem decisória do que o Sumo e obviamente do que o monsieur mas, mesmo assim, não dá ordens à Goldman Sachs, à FED, à Boeing, à Shell, à Carlyle, à Blackwater, nem sequer a Netanyahu. Recebe ordens. E tem de zelar pelo reforço da Ordem Económica Global, aliciando ou pressionando dezenas de Estados a assinar o TTIP e o TSA. E em que medida a atribuição do Prémio Nobel da Paz contribuiu para a paz, monsieur ? Obama mantém todas as guerras herdadas de Bush (pai & filho) e foi adicionando outras campanhas armadas (directamente ou por procuração: Bahrein, Iémen, Líbia, Síria, Ucrânia, etc.). É certo: Obama sorri generosamente e veste à manequim. E de que serve à Humanidade este porte de etiqueta e este traje de mordomo? Obama manda? É mais mandado do que manda? Há tempos, um ex-presidente USA, James Carter, num desabafo televisivo, não conteve as lágrimas. Justificou o que fez e o que não fez: o presidente não manda . Também o papa Francisco não manda na Igreja nem muda os grandes interesses e desígnios da Igreja: apenas poderá mudar (e temporariamente) a imagem da Igreja, objectivo acalentado pelos sectores táctico-prudenciais, após um longo ciclo de descrédito (crimes do banco do Vaticano, colaboração com as ditaduras mais sinistras (principalmente na América Latina), e as geopolíticas mais predatórias um pouco por todo o orbe, desautorização dos teólogos da abertura, acosso dos padres-operários, quebra das vocações sacerdotais e conventuais, evasão de crentes, confirmações de pedofilia, suspeitas de magnicídio, etc.). Monsieur, mon ami , fraseados cativantes, gestos de proximidade, valores abstractos, paroles. Monsieur , sempre que uma organização com cultura para dar a volta , com verbo de aggiornamento , gera e acumula desencanto e vê reduzir-se a sua fatia de mercado e a empatia geral, desce uns degraus da pirâmide. Simula mesmo descer à base. Foi o que sucedeu com a rainha da Inglaterra ao condecorar os Beatles com a Ordem do Império. Pretendeu vender um sinal de identificação com a maré juvenil e contestatária. Com a entrega do colar, que mudou na Casa Real, na Monarquia Britânica, no capitalismo deste subimpério? Só as princesas trocaram de amante com mais desembaraço e menos resguardo, dividindo o tálamo com nobres, plaboys e plebeus. Realmente, esta modernização apenas fez prosperar os tablóides. Neste interlúdio do séc. XXI, cabe à Igreja do Polvo de Deus resignar-se a aceitar um papa realmente bom, em comunhão com a Igreja do Povo de Deus e os condenados da Terra . Os Média andam com o papa-sorriso ao colo. Sim, monsieur , todos os dias nos ministram o tónico do Santo Padre. Os empresários da opinião pública preferem que depositemos esperança na palavra solta, a tocar o irreverente, do public relations Francisco da Santa Sé do que nas palavras de ordem de manifestações e greves anti- establishment , e dos projectos revolucionários e alternativos. Por isso, nos instruem para que sejamos todos franciscanos , sob pena de tresmalhe herético. Em verdade, em verdade vos digo, monsieur , já outro franciscano, João XXIII, foi um bondoso papa, após séculos de papas-maus. O tempo o requeria. Deus o chamou à sua presença, encerrando o seu esplêndido e breve pontificado (1958-1963). Tiveram de passar 50 anos, a fim de que Roma achasse que o fumo branco deveria anunciar um amigo da justiça e da paz. Até quando e com que balanço pastoral? Lembrarei, monsieur : já o fundador da Ordem Franciscana, Francisco de Assis, que irrompeu, no hagiológio, para redimir a Igreja e o Mundo dos desmandos da riqueza e da baixeza, não impediu que, nestes 800 anos, a Terra fosse preservada de colossais pilhagens e terríveis atrocidades, com a Igreja, por regra, cúmplice. Mais, monsieur , a Ordem Franciscana, que advogava o despojamento das sandálias apostólicas, acabou presa do ouro e do incenso e de seus compromissos. Vossa Senhoria é confessadamente franciscófilo e obamaníaco, porque precisa de se autojustificar e reescrever a sua biografia. Fez o que o sistema lhe exigiu e continua a exigir: atirou o socialismo, com uma pedra ao pescoço, para o fundo do mar e agora reza pela sua alma.

Questão colocada por Vítor Constâncio, vice-presidente do Banco Central Europeu, ex-ministro das Finanças, ex-governador do Banco de Portugal, ex-vogal do BPI e da EDP, ex-secretário-geral do PS:

Qual o papel do Euro na unificação da Europa?

K. M.
Sehr geehrter herr [2] , o Euro é o Marco do IV Reich. Na guerra económico-financeira, Portugal deixou cair o Escudo e ficou desarmado. Sei do que falo. Sou alemão. Portugal tem uma economia débil e uma moeda forte. Desenvolveu a doença da dívida galopante, estimulada pelos credores, apostados em criar uma grande zona de ajuda, baseada na suspensão dos instrumentos de soberania e sob a bota da usura e a égide da jurisprudência extraterritorial. Porque serei suspeito de ser marxista, reforçarei a minha tese euromonetária com os empréstimos de Mayer Rothschild e John Adams, afiançadores do domínio da finança sobre a Política, a Economia, a Sociedade, a Comunicação, a Cultura. [3]

Questão colocada por José Sócrates, ex-militante do PSD, ex-deputado, ex-secretário de Estado, ex-ministro, ex-primeiro-ministro, ex-secretário-geral do PS, ex-presidente do Conselho Consultivo do Grupo Octapharma para a América Latina, presidiário nº 44:

Como arrumaria, numa gaveta filosófica, o quadro partidário português?

K. M. O Movimento das Forças Armadas, executor do Golpe de Estado Democrático de 1974, propôs-se concretizar três D`s: Democracia, Descolonização, Desenvolvimento. O quadro partidário português poderá ser definido com três I`s: Ideais, Ideias, Interesses. A Esquerda distingue-se pelos ideais e pelas ideias. A Direita pelos interesses. O Modelo Democrático Burguês é um Sistema Clientelar. O presente arco da gover(nação) é a base aparelhística da alternância e da salvaguarda do modelo de negócio. O Kapital é quem mais ordena. A burguesia detesta a democracia crítica e participativa. Reduz a democracia a números: à estatística eleitoral e à contabilidade do saque. Até agora, nenhum banqueiro ou grande empresário se tem dado mal com esta equação-rotação em todo o percurso pós-revolucionário português. Os ministros não passam de administradores-delegados das corporações. O parceirato à trois tem resistido às provas de stress . Os dispositivos mediáticos reproduzem ad infinitum o discurso do poder económico-financeiro, a fim de manter a população prisioneira da fórmula. Entretanto, a democracia está a revelar-se cada vez mais pobre e os portugueses continuam a empobrecer. O programa de espoliação tornou-se obsessivo. Ameaça perdurar dezenas de anos no século XXI. Durou séculos na Idade Média e na Idade Moderna. Durou milénios nas Diversas Antiguidades. Mas poderia demorar meses se algo ou alguém obrigasse o PS a tirar o socialismo da gaveta, voltando a defender (desta vez, com depósito de caução e palavra de honra) a sociedade sem classes e o marxismo como inspiração teórica predominante, redistribuindo autocolantes e enrouquecendo a gritar Partido Socialista, partido marxista. Para isso, monsieur porte-plume de la Nouvelle Philosophie Occidental, Vossa Excelência teria de debruçar-se sobre a Miséria da Filosofia, de Karl Marx, após haver provavelmente tropeçado na Filosofia da Miséria, de Proudhon. A condenação à crónica indigência, monsieur, também poderia demorar semanas se os explorados se pusessem de pé e forçassem os exploradores a prestar contas. E, monsieur, poderia demorar dias se uma força categórica fizesse cumprir a Constituição da República.

A História anda por aí, monsieur.

Não se esqueça de reler o Manifesto. É mais importante do que visitar o meu túmulo. 
 
[1] II Congresso Internacional Marx em Maio: Promovido pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 8, 9 e 10 de Maio, 2014,
[2] Prezado senhor.
[3] Mayer Rothschild, banqueiro, afiançou, há 200 anos, que o controlo da moeda de um país tornava irrelevantes as leis nacionais. John Adams, presidente dos USA, considerou, há 200 anos, que a dívida era um meio de submeter e escravizar um país, sem recorrer a meios militares.
[NR] Aos leitores estrangeiros: sede do PS, em Lisboa.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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