domingo, 14 de junho de 2015

Mercadorias, revoltem-se!

por Sandra Monteiro


Vivemos neste paradoxo. Quanto mais o neoliberalismo alarga a lógica do mercado às diversas áreas da organização social, mais constrói um mundo que tudo transforma em mercadorias. Transforma tudo… e todos. Incluindo os «todos» que mais teriam a ganhar, em ganhos de vida com bem-estar, vivendo numa sociedade de lógicas económicas plurais, em que o debate sobre as modalidades alternativas de organização social fosse encorajado.

Destruídos os vínculos sociais, a confiança de que os direitos e contratos serão respeitados, comprometida a convicção de que o poder político faz escolhas para defender a comunidade, como podem cidadãos reduzidos a mercadorias revoltar-se? Um dos caminhos passa por compreender o quanto o neoliberalismo é hábil e sistémico na construção do mercado e de mercadorias. Observando-o para o combater.

Projecto de vocação totalitária, o neoliberalismo evolui eliminando o espaço da divergência e reconfigurando os sectores ainda protegidos da lei da oferta e da procura, onde imperam lógicas de coesão social e territorial, de direitos (sociais, laborais, ambientais…), de trocas não-mercantis e não-monetárias. Mas não o faz à lei da bala. Fá-lo através de dispositivos sociais aparentemente inócuos e não conflituais, como analisa nesta edição o historiador Luís Bernardo no artigo «Neoliberais apaixonados», que parte da «educação para o empreendedorismo» para mostrar o quanto ela «é uma tecnologia social que visa a modificação das paixões (…) e a naturalização da racionalidade neoliberal».

Estes dispositivos estão presentes na linguagem e na engenharia neoliberais desde finais da década de 1980, mas hoje são assumidos com maior clareza, sobretudo pelos que escondem mal o quanto estão satisfeitos com os meios de que conseguiram apoderar-se para os concretizar. Muitos dos recentes debates sobre o futuro da Segurança Social passam por aqui. Os executores da austeridade começam por criar uma economia de desemprego, de emigração, de precariedade, de baixos salários e de afunilamento das fontes de contribuição do sistema de previdência. Depois evocam uma pretensa «fatalidade demográfica» e uma «descapitalização inelutável» da Segurança Social. Por fim, esperam que o conflito geracional que acicatam favoreça propostas como a da indexação das pensões ao comportamento da economia (que eles próprios impedem de se desenvolver), fazendo chegar a lei do mercado, senão pela privatização pura e simples, pelo menos pela aplicação da oferta e da procura a um contrato que foi efectuado em sede de direitos e deveres laborais e sociais.

O que é difícil é encontrar um sector que tenha escapado à linguagem e às engenharias neoliberais.
Com efeito, a lógica do mercado criou uma arquitectura de dimensão internacional (Organização Mundial do Comércio, União Europeia, Tratados de Comércio Livre, etc.) para se implantar, mas disseminou-se também nas mais ínfimas células do tecido social. A linguagem que passou a ser usada, como se nada fosse, foi traduzindo uma mudança de paradigma social, senão mesmo civilizacional. Enquanto as leis e os direitos laborais davam lugar ao «mercado de trabalho», as secções de pessoal eram substituídas por «departamentos de recursos humanos», os trabalhadores e os seus saberes por «capital humano», a informação e o conhecimento por «conteúdos» e «produtos».

Na educação e na investigação, onde se testam muitas vezes os condicionamentos mais totalitários, os exemplos abundam. Além do referido caso da «educação para o empreendedorismo», veja-se, igualmente nesta edição, a forma como a educação de adultos passou, nas últimas décadas, de uma lógica de «educação popular» para uma outra de «gestão de recursos humanos», substituindo os objectivos de educação permanente e de mobilidade social por «finalidades de produtividade, competitividade e empregabilidade» (ver, no dossiê dedicado a este tema, o artigo de Rui Canário).

Para onde quer que se olhe, fica a impressão de que o micro repete o macro, como numa realidade fractal. Pois não são estas as lógicas que o discurso e as políticas dominantes querem pôr a operar em todo o sistema educativo, em todas as esferas de reprodução social? Ainda recentemente, no programa Expresso da Meia-Noite da SIC Notícias (15 de Maio de 2015), Pedro Gonçalves, secretário de Estado da Inovação, Investimento e Competitividade, se exprimiu com a maior clareza sobre a perspectiva que os neoliberais têm da relação entre, por um lado, educação, conhecimento e investigação científica e, por outro lado, inovação, produto, mercantilização e criação de valor accionista. A correcção impõe-se de imediato: a seu ver, não há sequer um «por um lado» e um «por outro»; há «uma lógica integrada», «um contínuo» de «um processo que começa na universidade e acaba no mercado», em que se dá a «conversão do conhecimento em produto» e no quadro do qual «o sistema científico nacional tem de ser avaliado pelo mercado».

Como afirmou na altura o secretário de Estado, diplomado com o MBA pela Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, ex-administrador executivo da AICEP - Portugal Global e ex-quadro (director, assessor, gestor de activos, etc.), entre 1997 e 2010, de vários gabinetes do Banco Espírito Santo (BES) e da Companhia de Seguros Tranquilidade, «o objectivo é criar investigação para a acção, para a criação de valor, e conseguirmos monetizar, transformar em valor, o conhecimento que temos». E prossegue: «o caminho que Portugal tem de fazer é apoiar a transformação do conhecimento aplicado em produto, em processo, em equipamento que nos permita, às nossas empresas, ganharem vantagens competitivas resilientes que permitam que elas concorram no mercado internacional (…), que nos tornem mais competitivos». Em suma, a universidade só existe para colocar produtos no mercado, tal como o diplomado só existe para alimentar a empregabilidade no mercado de trabalho.

Que esta narrativa surja com mais força quando a «economia de mercado» não funciona e o «mercado de trabalho» não emprega são meros detalhes. Desde que se consiga aproveitar a oportunidade da crise, claro, para baixar salários, pensões, prestações sociais e atacar o Estado social e os serviços públicos. Como se vê olhando para o núcleo das imposições que se mantém ao povo grego, com ou sem Troika – como acontecerá em Portugal –, o cerne do regime de acumulação (e de desapossamento) não está na ficção em tons cor-de-rosa que vai sendo servida; está na armadilha económica e financeira (dívida, imposições orçamentais) que torna dependente dos credores financeiros o poder político, seja qual for o programa com que os governos são eleitos. Os restantes dispositivos – podermos ser todos empreendedores, inovadores, vendáveis no mercado, e ainda assim vivermos condignamente como sociedade – existem para garantir a feliz aceitação dessa dependência, enquanto se sonha com uma modernidade bloqueada. Até que as mercadorias se revoltem.

segunda-feira 8 de Junho de 2015

aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1060

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...