quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A economia do Individamento

«Insultar os mercados prejudica a economia nacional», insistiu uma vez mais Cavaco Silva, o candidato incapaz de tecer qualquer crítica à responsabilidade que o modelo de governação económica europeia, (nomeadamente no que concerne à actuação do BCE), tem na agonia em que se arrasta a crise.

A aceitação subserviente da subjugação da política à (ir)racionalidade dos mercados financeiros não é, pois, assunto que inquiete o político Cavaco Silva. Tal como na resposta que consta da ficha que preencheu para a PIDE (na qual Aníbal se considera «integrado no actual regime político»), poderá dizer-se que o agora candidato à presidência se considera perfeitamente “integrado no actual regime económico”. O que é preciso é "fazer o trabalho de casa" (não importam as condições decisivas de enquadramento para tal se faça). O que é preciso é tratar da vidinha.

Esta deferência para com os mercados financeiros e para com as instituições europeias encontra-se contudo em plena coerência com o modelo económico que Cavaco Silva, o "bom aluno", aceitou e preconizou para Portugal. Um modelo que assenta numa economia do endividamento, o paradigma constituído no seu consulado e que se aprofundou, há que o dizer, nas governações seguintes.
A política de habitação seguida nos governos de Cavaco Silva é, a este respeito, um exemplo lapidar. Foi de facto nos seus mandatos que se configuraram os pilares da "revolução da casa própria", um dos fenómenos mais marcantes da sociedade e da economia portuguesa nas últimas duas décadas. Isto é, a resolução da questão da habitação através dos mecanismos do mercado, através da massificação do crédito à aquisição de casa própria.

A supressão da fixação administrativa das taxas de juro em 1989, a liberalização do crédito à habitação em 1991 e a descida progressiva dos juros estabeleceram as "condições macroeconómicas" para o impulso da habitação própria, que passa a representar 76% do parque habitacional em 2001, depois de significar 66% em 1991 e apenas cerca de 47% em 1970.

Dados recentes mostram que o peso do crédito à habitação no endividamento total das famílias cresceu cerca de 10% nos últimos 15 anos, atingindo em 2009 quase 80% do volume global de empréstimos contraídos por particulares. A relevância destes números fica amplamente reforçada pelo facto de o endividamento ter aumentado ao longo da última década (de 54% do PIB em 1999 para 97% em 2009, conforme indicam os Relatórios de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal). Em percentagem do PIB, o endividamento das famílias com a aquisição de casa própria passa de cerca de 40% para 77% no mesmo período.

Poderá argumentar-se que assim se resolveu a questão habitacional no nosso país. Mas imediatamente verificamos que "a questão habitacional" que se resolveu foi apenas a da aquisição de casa própria pela classe média, o que não é propriamente uma verdadeira "questão habitacional". No consulado de Cavaco, os mais carenciados, as populações residentes em barracas na Área Metropolitana de Lisboa, apenas veriam atendidas as suas necessidades na sequência de uma Presidência Aberta de Mário Soares, violentíssima para com a indiferença do governo, e que obrigaria Cavaco Silva a lançar o Programa Especial de Realojamento (PER), em 1993. O Aníbal social é o da caridade, não o da política social pública.


Mas quem ganhou verdadeiramente com este modelo de política habitacional, assente no endividamento das famílias, uma vez que a democratização do acesso à habitação não resultou da diminuição do preço dos fogos (que não cessou aliás de subir entre 1995 e 2006)? Ganhou obviamente o rentismo associado aos mercados fundiário e imobiliário, que resistiram incólumes à "democratização" da casa própria. A factura, está bem de ver, foi sendo paga pelo Estado (através das bonificações e isenções fiscais à aquisição) e pelas famílias (através do endividamento junto das instituições bancárias). Num processo de alimentação da especulação imobiliária com recursos públicos, que contribuiu acrescidamente para uma absurda overdose da construção, que o rácio de quase um alojamento e meio por família, em 2001, claramente reflecte.

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